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Democracia, ranço de 1964 e suas sequelas hoje

Em 2007 fui obrigado literalmente a servir o Exército Brasileiro, experiência que fez parte da minha história e construção pessoal, da qual guardo excelentes lembranças, pessoas diversas e contextos diferentes de tudo o que eu já havia vivenciado até meus 18 anos, no entanto, no dia 31 de março daquele ano, um senhor mais velho, cabelos brancos, militar da reserva, deu uma palestra para os 160 jovens soldados, com o título “A Revolução Democrática de 64”, o que ligou meu alerta crítico, afinal, eu era professor substituto de história e sociologia numa escola pública, mas, como  naquele momento eu estava em ambiente militar, e na qualidade de conscrito, nada falei, silenciei, ouvi e ao mesmo temo lamentei comigo.

Como ser compreensivo da complexidade própria da individualidade e pluralidade humana, consequentemente da história, eu até entendo os receios de que ditaduras comunistas, fascistas, nacional-socialistas, populistas e de viés ideológico fossem ou sejam implantadas no Brasil, afinal, o que se percebeu no mundo com Fidel Castro, Mau Tse-tung, Franco, Salazar, Hitler, Stalin, Mussolini, Pinochet entre outros, foram relatos propagados pela mídia, que ninguém, seja em 64 ou em 2021 gostaria de vivenciar na pele.

O que me causa perplexidade com uma palestra que ouvi em 2007, é a defesa de um golpe militar em 1964 sob o “pretexto” de se buscar preservar a democracia, perpetuando uma estado de exceção, de limitação de liberdades individuais, de constante vigilância, forçando a população, mesmo que inconscientemente, a viver o conformismo de suas vidas e não se manifestar de qualquer forma em oposição ao governo estabelecido, onde as regras não são decididas pelos eleitos do povo, mas por um gabinete de generais, onde esse simples texto poderia dar causa a uma prisão, tortura, sequestro autorizado (levar para averiguação), suicídio na sela, enterro de indigente, pau de arara, eletrochoque, exílio forçado do “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

Certamente uma massa de pessoas da época e de hoje, sequer sentiu as agruras do regime ditatorial militar, no entanto, se ditatura militar, partidária ou do povo, de direita ou esquerda, é sim Ditadura, deixa marcas profundas na dinâmica de um país, o qual, mesmo democratizado no sentido constitucional do termo, guarda consigo sequelas que somadas à questão racial brasileira não resolvida, deságua em uma sociedade que se cala para os privilégios políticos, que vê ordem e progresso como sinal de algo homogêneo, igual, de mesma visão, guiada e feita pelo Estado, que justifica o uso da força pela sua incapacidade de resolver suas cicatrizes sociais, que herda no perdão da anistia o hábito da injustiça, do apagamento da história, valorização da ignorância,  que justifica a tortura, e nos faz pensar que democracia é só o direito que os militares da década de 80 consentiram nos devolver.

Não se deixe preso nos cativeiros ideológicos trazidos pelo militarismo ditatorial, democracia não é somente votar e ser votado, democracia em aversão à escuridão ditatorial, é um aprendizado coletivo e persistente do exercício do viver em sociedade, é a cobrança de um Estado cada vez mais transparente, cuja lei deve trabalhar pela emancipação das pessoas, é participar do processo de decisão, construção e fiscalização das políticas públicas, é independência cidadã para com o político eleito, o colocando como agente do servir, é defender separação dos poderes sem se negar a criticá-los para o seu aperfeiçoamento.

A democracia é uma “corda” em constante tensionamento pelo anseio de liberdade e de segurança, indesejada pelos que almejam o mundo ideal pelo uso da força e da grandeza de um poder soberano, incompreendida pelos que adoram o conforto da ignorância, desvalorizada pelos que se frustraram com a classe política, democracia hoje desnorteada pelo avanço da internet e dos mecanismos de comunicação, no entanto, é criação humana própria dos que ainda desejam viver em sociedade, dos que visam a promoção do bem comum, é um caminho em descoberta num mundo que se modifica diariamente.

1964, não deve ser esquecido, é sim parte de nossa formação histórica, mas, não para ser celebrada como o indicado na “Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964” publicada no dia 30/03/2021, equivoca-se o novo Ministro da Defesa, afinal nossos passos errados na história devem ser lembrados para refletir, ponderar opiniões, nos constranger a não repetir, servir de lição de que, a ordem constitucional atual, não carece nem autoriza a danosa compreensão de que pelo bem da democracia, esta venha a sofrer sua morte.

Caio Sousa
Advogado, Professor Universitário, Mestre em Ciências Jurídico Políticas pela Universidade de Lisboa, Especialista em Direito Municipal, Pesquisador no grupo “Cidades Transparentes” do Labô – PUC/SP.

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