A novidade nesses últimos anos foi a criação da “Lenda dos Protestos Antidemocráticos”, criação tupiniquim que surgiu em meio à ignorante polarização política que o brasileiro abraçou, polarização que fez emergir uma série de protestos, todos com pautas diversas, alguns reivindicando a saída do presidente, a queda da “burguesia”, gritando palavras de nicho, como “fascista”, “conservador”, “genocida”, outros protestos pela garantia das liberdades, manutenção do governo, volta do militarismo, e deixando claro que a bandeira “jamais será vermelha”, pautas que são diluídas, e que não são abraçadas por todos os manifestantes. Mas, e essa lenda, como se encaixa nisso tudo? Vou te contar!
Uma Lenda é uma narrativa fantasiosa, fazendo um mix entre realidade e ficção, conta uma histórica, que geralmente não é verdadeira, mas que pode de repente reproduzir um acontecimento real. Lendas são inspiradas em fatos, e recentemente foram inspiradas nos protestos, que juntam entre manifestantes, democratas, liberais, comunistas, partidários e pessoas sem partido, e que dentre tantos gritos fez emergir também aqueles que defendem o “AI5” ou uma volta do governo ditatorial, pauta totalmente reprovável e que deve ser criticada, mas que provocou o surgimento da pecha “protesto antidemocrático”.
A lenda surge quando parte da imprensa passa a apontar de forma estranha, que referidos protestos seriam ilegais, pois seriam contra a democracia, e assim, usar da liberdade de expressão para defender ideias antidemocráticas não seria possível, seria ilegal ou inconstitucional. Entendo e concordo com o receio de uma volta de governos totalitários e ditatoriais, também sou totalmente contra, no entanto, a criação dessa história de que “é vedado o protesto antidemocrático”, revela-se uma verdadeira lenda, que faz um mix do medo real do que alguns bravejam nas manifestações, com uma ficção de que a democracia será defendida com uma censura prévia contra aquelas pessoas que absurdamente clamam pela volta de um regime militar.
Devo deixar claro que, uma coisa é o uso da liberdade de expressão (voz, fala, cartaz) nas ruas para clamar por pautas que cada um entende legítimas de serem defendidas, mesmo que com temas contrários à nossa constituição e legislação, outra coisa é a realização de ofensas, a ameaça ou provocação de danos reais à moral, integridade física e patrimonial de indivíduos, o que para muitos pode ser uma forma de protesto na modalidade de “desobediência civil”, mas que em seu âmago resultará em uma dano, por mais que esse “crime” seja praticado tendo uma excelente justificativa.
Vejamos a “Marcha da Maconha” onde se busca a liberação de uso recreativo de um produto até então reconhecido como ilícito, bem como protestos pró-aborto que chama atenção para um suporto direito da mulher não dar seguimento à gestação sem motivo específico, apenas pela sua vontade, mesmo sendo pauta que é considerada crime se colocada em prática antes que a lei diga o contrário. Da mesma forma temos os manifestantes que defendem uma tomada de poder pelos militares sob o argumento de maior segurança e ordem, ou que pregam a necessidade de fechamento do STF apontando todos os abusos que a corte estaria praticando, ou até aqueles que querem fechamento de emissoras e etc, defesas que não encontram espaço e abrigo na constituição, mas que, enquanto são pautas e gritos, ainda estão no espaço da manifestação de ideias.
Diferentemente, quando vemos ministros do STF sendo ameaçados, mesmo que implicitamente, fogos sendo arremessados contra a corte, jornalistas agredidos, calúnia, injúria e difamação contra juízes e ao presidente da república, ofensas à honra, preocupação com integridade física de autoridades, críticas que saem da esfera profissional e adentram na vida pessoal dessas pessoas, temos um cenário preocupante, que pode sim ser gerado num espaço de mau uso da liberdade de expressão, e que no momento que causam dano, devem ser reprovadas e penalizados.
O que me preocupa de verdade, é que no país, o xingamento, desejo de morte, ameaças à integridade e famílias, virou algo culturalmente aceito contra a figura do presidente, governadores e prefeitos, e totalmente censurável, inclusive com censura prévia, quando os atos são contra ministros do STF e integrantes do legislativo. Devemos ter o direito de cuspir e agredir verbalmente nossas autoridades, principalmente quando julgamos que elas merecem? Acredito que não é o caminho. Me preocupa que a imprensa compre a narrativa lendária de que desejar saída de algum ministro do STF, membro do Senado ou da Câmara represente um protesto ou pleito antidemocrático, enquanto que culturalmente aceitamos que os gritos pelo impeachment contra os presidentes é algo legítimo e democrático.
No final, o brasileiro ama traços de autoritarismo que veda liberdades mau utilizadas segundo o ponto de vista do momento e de cada grupo, ao mesmo tempo que adora gozar da liberdade de expressão amplificada pelas redes sociais e que hora ou outra volta a ocupar as ruas. Ocorre que, a democracia tem por pressupostos sim a possibilidade de inclusive falar contra ela, a democracia num estado de direito, lhe autoriza defender ideias, expor posições, ao mesmo tempo que criminaliza o uso danoso da liberdade de expressão, a democracia não acolhe a censura prévia com fechamento TVs, blogs ou de redes sociais por ordem do estado juiz ou do executivo, pelo contrário, a democracia não é contra os veículos, não é contra a boca que grita nem contra o uso da linguagem, a democracia responsabiliza ao lugar de calar.
Particularmente tenho uma postura política contra a defesa de pautas tidas como ilegais ou inconstitucionais, no entanto compreendo que a democracia deve ser exercida em plenitude, com garantia de que a liberdade de expressão seja plena, criticável quanto ao seu mau uso, e passível sim de responsabilização, mas nunca cerceada previamente, como se existissem manifestações e protestos que não poderiam existir. Criticar e responsabilizar não significa calar e usar de futurologia de que a fala voltará a ser danosa.
Qual nosso receio, inclusive ao escrever esta coluna? Receio que a crítica institucional e profissional seja proibida ao sabor do criticado, que contas bancárias sejam vasculhadas ao sabor dos incomodados, que investigações sejam abertas para construção do cenário de medo, receio que a democracia seja indevidamente utilizada para restabelecer censura à defesa de ideias por mais inconstitucionais que sejam, receio que se busque defender a democracia através de sua morte, receio que a liberdade de expressão seja confundida com liberdade de agressão, tenho temor que os personagens políticos e do judiciário mudem, mas criemos um sistema onde a liberdade de expressão reste reduzida pela criação de lendas de que o ser, existir, crer e falar, seja algo “antidemocrático” só porque desagrada visões de mundo e de poderosos do momento.
Caio Sousa
Advogado, Professor Universitário, Mestre em Ciências Jurídico Políticas pela Universidade de Lisboa, Especialista em Direito Municipal, Pesquisador do Labô – PUC/SP.