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33 anos da Constituição Federal e a “paternidade helicóptero”

A Constituição Federal da República Federativa do Brasil comemorou nesse último dia 05 de outubro de 2021, 33 anos de sua promulgação pela Assembleia Nacional Constituinte, sob a presidência de Ulisses Guimarães, sendo iniciada em 1987 e concluída no segundo semestre de 1988, lançando a lei máxima de nosso país após praticamente 20 anos do golpe militar e de um regime político ditatorial, revelando-se assim, um marco de retorno da democracia, reconstrução das instituições que representam os poderes do Estado, além de devolver aos brasileiros a perspectiva do exercício das liberdades e uma carta de garantias e proteções como direitos básicos e intocáveis na condição de cláusula pétreas.

Coincidentemente, este escritor que vos escreve, nasceu no mesmo ano do texto constitucional, posso dizer que cresci com a nossa magna carta, e depois de me aventurar em me aprofundar sobre o estudos da constituição, verifiquei que temos um texto riquíssimo, com um vasto leque de direitos fundamentais, um belo sistema de seguridade social, além de apontar para um freio constitucional a qualquer abuso dos que temporariamente ocupam um dos 3 poderes da União, dos estados, municípios e distrito federal. Ocorre que, nossa constituição, apesar de bela e bem detalhista, sofre de um mal comumente atribuído a famílias disfuncionais, a “paternidade-helicóptero”. Vou buscar explicar:

Sabemos que idade não significa maturidade, não revela necessariamente crescimento emocional e cognitivo, e a “paternidade-helicóptero” representa um desses fatores inibidores do desenvolvimento infantil, como nos aponta a Developmental Psychology em estudo publicado pela Universidade de Minnesota. Em síntese, esse tipo de paternidade “tóxica” é observado em pais e mães superprotetoras, famílias ultracontroladoras, que interferem em todos os processos de vivência, limitam as tomas de decisões, querem por muitas vezes preservar compreensões que não dialogam com a realidade, resultando em adultos inseguros, perdidos, sem força e expressão própria, que sempre recorrem a um terceiro para validar suas posições, ou seja, pessoas que não alcançam seu potencial máximo.

Assim vejo nossa constituição com 33 anos, enxergo uma constituição que, apesar de totalmente planejada e pensada para produzir frutos extraordinários no caminho de redução das desigualdades sociais e regionais, diminuição da pobreza, objetivando construir uma sociedade livre, justa e solidária, hoje, revela-se um texto também disfuncional, um adulto aquém do seu potencial, não em razão do seu conteúdo, mas por responsabilidade de todos os agentes da sociedade, políticos, magistrados, empresariado, que tomaram a Constituição de 88 como uma criança em meio a paternidade helicóptero.

Sim, tivemos grandes lançamentos com a nova constituição, como a previsão de um sistema único de saúde público e universal, maior autonomia dos municípios, ampliação da proteção às crianças e adolescentes desaguando no ECA, garantias ao trabalhador e um obstáculo a qualquer arrobo ditatorial, só que, o texto constitucional carecia de pais e mães que lhe injetasse vida, que lhe assegurasse o desenvolvimento de uma identidade que não estivesse atrelada aos seus criadores, mas que pudesse chegar à idade de Cristo exalando segurança, com força de norma a ponto de coibir qualquer possibilidade de ação em contrariedade ao seu texto, permitindo que as letras saltem do papel e se revelam no Brasil real.

Parte desse adulto disfuncional que é nossa constituição, deve-se a governos que ocultam a identidade da constituição e se sucedem atraindo para sí o sucesso em unicamente cumprir aquilo que a constituição lhes impõe como dever, colocam-se maiores que o texto que lhes delimita o poder, usam da constituição como mero instrumento de acomodação de seus interesses políticos que em nada dialogam com a sociedade de fato, corrompem e se corrompem, recorrendo ao texto constitucional para livrarem-se dos seus atos através de princípios que serviriam inicialmente para atender ao interesse público e não às particularidades de quem porta a caneta.

São disfuncionalidades provocadas por um legislador mais preocupado em se manter no sistema, jogando o jogo eleitoral a cada 4 anos, do que em atribuir vida ao texto constitucional através de leis que venham lhe atribuir de fato efetividade, omissos e aprisionadores do potencial da constituição que muito previu, mas que, com “parentes” tão egoístas, resta inerte perante a ausência de proteção real de pessoas antes já constitucionalmente alcançadas, além das novas realidades que imporiam aos legisladores o papel de reavivar e atualizar nossa Lei Maior.

Somando-se a uma sociedade vitimada pelas suas escolhas que insistem em olhar para clientelismo, coronelismo, corporativismo e rouba mas faz como algo cultural, temos ainda um judiciário que em sua cúpula faz da interpretação da constituição um caminho de incertezas, como de fosse uma massinha de modelar, que se mantem massinha, mas que hora ou outra vira coisas diferentes ao bel prazer de quem a amassa, chegando em alguns casos a desafiar o texto literal e expresso com seu ativismo criativo, querendo nos levar a crer que, onde a constituição diz “A”, entenda-se “B”, não porque será um avanço para a sociedade, mas que naquele momento o intérprete se coloca bem mais acima do que o texto que interpreta.

Pois é senhores e senhoras, tivemos avanços sim o nascimento da constituição de 88, ela sofreu alterações, reformas, mas a ela ainda é negada maior efetividade, é negada identidade, à constituição não é permitido seu crescimento pleno e sua vivência, restando muitas vezes resumida a mero texto de compromisso, desafiada em cenários de pandemia, crises, deixada à sorte do político da vez, mas carece de “pais e mães”, pessoas que lhe deem vida, que não a utilizem como desculpas e lhe impeça de alcançar seu potencial que vai além de 250 artigos. Lembro assim de Carlos Drummond de Andrade quando nos lembra que “As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei”.

Caio Sousa
Advogado, Professor Universitário, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa, Especialista em Direito Municipal, Pesquisador do Labô – PUC/SP.

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